Albert Camus, in A Queda
MEGA divagação
Uma vez desperta a minha atenção, não me foi difícil descobrir que tinha inimigos. Na minha profissão, em primeiro lugar, e depois na minha vida social. A uns, tinha prestado serviços. A outros, deveria tê-los prestado. Tudo isso, em suma, estava na ordem das coisas, e descobri-o sem grande mágoa. Em contrapartida, foi-me mais difícil e doloroso admitir que tinha inimigos entre pessoas que mal ou absolutamente nada conhecia. Sempre tinha pensado, com a ingenuidade de que já lhe dei algumas provas, que os que não me conheciam não poderiam deixar de gostar de mim, se chegassem a privar comigo. Pois bem, nada disso! Encontrei inimizades sobretudo entre os que não me conheciam senão muito por alto, e sem que eu próprio os conhecesse. Suspeitavam, sem dúvida, de que eu vivia em plenitude e num livre abandono à felicidade: isso não se perdoa. O ar do êxito, ostentado de uma certa maneira, é capaz de pegar raiva a um asno. A minha vida, por outro lado, estava cheia a transbordar, e, por falta de tempo, eu recusava muitas oportunidades! Esquecia em seguida, pela mesma razão, as minhas recusas. Mas tais oportunidades tinham-me sido oferecidas por pessoas cuja vida não era plena, e que, por esta mesma razão, se lembravam das minhas recusas. Era assim que, para dar apenas um exemplo, as mulheres, no fim de contas, me ficavam caras. O tempo que lhes consagrava, não o podia dedicar aos homens, que nem sempre me perdoavam. Como sair disto? Não nos perdoam a nossa felicidade, nem os nossos êxitos, senão no caso de consentirmos generosamente em reparti-los. Mas, para se ser feliz é preciso não nos ocuparmos muito dos outros. As saídas ficam, pois, cortadas. Feliz e julgado ou absolvido, e miserável. Quanto a mim, a injustiça era maior: eu era condenado por causa de felicidades antigas. Tinha vivido durante muito tempo na ilusão de um acordo geral, quando de todos os lados choviam sobre mim, distraído e sorridente, os juízos, as flechas e os remoques. A partir do dia em que fiquei alerta, veio-me a lucidez, recebi todos os ferimentos ao mesmo tempo e perdi de uma só vez as minhas forças. O universo inteiro pôs-se então a rir à minha volta.